RESENHA DO LIVRO “A LÍNGUA DE
EULÁLIA: NOVELA SOCIOLINGÜÍSTICA”
Priscila Trevisan
A obra “A
língua de Eulália: novela sociolingüística”, do escritor, professor, tradutor e
linguista Marcos Bagno, foi publicada pela primeira vez pela Editora Contexto,
em 1997.
Marcos
Bagno conta a história de uma viagem de férias de três amigas (Sílvia, Emília e
Vera) à casa de Irene, tia de Vera. Irene é uma linguista e, ao perceber o
preconceito linguístico a que incorrem as três mulheres ao ouvirem a fala de
Eulália, amiga de Irene, propõe uma reflexão sobre a língua portuguesa. Elas
gostam tanto que sugerem ter aulas sobre o assunto durante sua estadia.
A partir
dos diálogos e reflexões das quatro mulheres, o livro explora as diferenças
entre o português-padrão (PP) e o português não-padrão (PNP), desvendando mitos
e preconceitos linguísticos e propondo uma forma crítica de ensinar a
norma-padrão da língua portuguesa sem deixar de valorizar o uso do português
não-padrão.
O livro
possui 22 capítulos, e 251 páginas. Os capítulos abordam o cotidiano das férias
das moças e as aulas de Irene (que vinha escrevendo um livro sobre as
diferenças entre português padrão e não-padrão) com suas convidadas. A cada
aula é visto um novo aspecto sobre as diferenças entre as variedades
linguísticas. Os capítulos subdividem-se procurando explicar de forma clara e
minuciosa variações da língua, embasando-se sócio-historicamente, na lógica e
nas próprias regras.
De
início, o livro fala sobre a chegada das moças e sua interação com Irene e
Eulália. Em seguida, sobre as aulas que, a princípio, procuram discorrer sobre
o mito da unidade linguística, colocando que o português de Portugal e o do
Brasil possuem diferenças, entre elas, as variedades geográficas, de gênero,
etárias, de nível de instrução, urbanas, rurais etc. e que a língua está em
constante movimento, sempre mudando e variando de acordo com o espaço e o
tempo.
O livro
evidencia que não há um modo de falar “certo” ou “errado”, mas diferente.
Portanto, o PNP, apesar de não se enquadrar à norma-padrão (que chegou a este
posto por motivos históricos, econômicos, sociais e culturais), não pode ser
considerado errado. Mas, devido ao preconceito linguístico, quanto mais longe o
sujeito está da norma-padrão, menos ele é valorizado. Desta maneira, aqueles que
não têm acesso a esta norma e trazem consigo uma rica bagagem de PNP (que possui
regras e lógica coerentes) podem acabar excluídos, vítimas de preconceito
linguístico.
De acordo
com Bagno, o preconceito linguístico surge a partir da evidência das diferenças
sociais, quando a língua é utilizada para deixar clara a distância entre
classes sociais.
O livro
ilustra que as principais diferenças entre o PP e o PNP são: o primeiro ser
artificial, por precisar seguir uma norma-padrão, não havendo flexibilidade;
precisar ser adquirido na escola e aprendido, decorado, memorizado, também ser
redundante e conservador, demorando a assimilar novidades, tendo uma tradição
escrita muito forte.
Já o PNP
é natural, seguindo as tendências da língua. Também é transmitido por gerações
e apreendido naturalmente pelos sujeitos. Por tratar de “enxugar os excessos”,
o PNP é funcional, eliminando regras desnecessárias, e inovador por se
modificar continuamente, além de ter uma tradição oral, sendo mais facilmente
apreendida, e familiar. Assim, o ditado da personagem Irene, “A língua voa, a
mão se arrasta”, ilustra o quanto o PNP é dinâmico.
Bagno
explica que não é apenas no português que estas variações linguísticas ocorrem,
mas em outras línguas, como francês, espanhol e inglês, evidenciando que estas
variações não podem ser tratadas como “erros”.
Entre
algumas diferenciações que o livro apresenta, encontra-se o caso da tendência
da nossa língua (derivada do latim) em transformar o L dos encontros
consonantais em R. Na verdade, como explica o livro, no PNP não existem
encontros consonantais com L, originando palavras como broco e pranta.
Outro
caso é a eliminação das marcas redundantes de plural, que mostra o quanto o PNP
é uma língua econômica. Ao invés de marcar o plural em várias palavras da frase
de forma redundante, como ocorre no PP, o PNP coloca apenas a primeira palavra
da frase no plural eliminando redundância sem perder o sentido.
A
personagem Irene explica que na variedade do PNP não existe o som consonantal
LH, ocasionando a transformação de LH em I, pela maior proximidade e comodidade
em pronunciar o I.
Em uma
das aulas, à noite, as quatro refletem sobre a simplificação das conjugações
verbais demonstrando que, enquanto o PP conjuga os verbos de acordo com cada
pessoa verbal, o PNP conjuga apenas o verbo da primeira pessoa verbal, enquanto
as demais pessoas verbais permanecem com a mesma conjugação (PNP: eu amo,
tu ama, ele ama, nós/a gente ama etc.).
Confirmando, novamente, sua economia ao eliminar concordâncias redundantes.
Assim como a necessidade do ser humano em distinguir-se do outro, do coletivo.
Mais
adiante, é explicado que as transformações de ND em N e MB em Macontecem
em decorrência das assimilações. O N e o D são fonemas dentais, ou seja, são
produzidos pela língua na mesma região da boca. A assimilação, por sua vez,
tenta transformar estes dois sons similares num mesmo som. Assim, o ND acaba
sendo pronunciado como N e o MB, como M. O mesmo ocorre com o ditongo EI,
transformado em E, quando diante das consoantes J, X e R. Ainda devido à
assimilação, no PNP o ditongo OU transforma-se em O ao ser pronunciado, embora
continue sendo escrito OU. O autor ainda evidencia que a diferença entre língua
escrita e falada ocorre em todas as línguas, em diversos graus de distância
entre as formas oral e escrita.
Em uma
das aulas de Irene, as moças refletem que a contração das proparoxítonas
(sílaba tônica na antepenúltima sílaba) em paroxítonas (sílaba tônica na
penúltima sílaba) é bastante frequente no PNP, para acompanharem o ritmo deste.
Assim como a tendência da língua de eliminar o som nasal das vogais após a
sílaba tônica faz com que palavras como garagem e homem, sejam faladas garage e home.
Bagno
explica que, em nosso país, alguns arcaísmos são tidos como erros, como é o
caso de aquentar, alevantar, ajuntar, assoprar... Mas, na verdade, são heranças
muito antigas, que foram conservadas pelas variedades de PNP.
Abordando
as analogias da língua portuguesa, elas podem levar à criação de regularidades
ao tentar enquadrar vários fenômenos às mesmas regras, comprovadas eficientes.
E também à hipercorreção, quando o sujeito tenta falar mais “corretamente” e
acaba “errando”. No PNP, a analogia cria novas formas regulares.
Ao final,
o autor coloca que existem muitas variedades linguísticas não- padrão e para
defini-las é preciso levar em conta uma série de fatores. Conclui que a
norma-padrão é nada menos que um ideal, e seu uso acaba tornando-se a
identidade das classes dominantes e conservadoras, marcando sua diferenciação
das classes menos privilegiadas. Os falantes considerados cultos, dominantes
desta norma, são sujeitos que tem nível superior completo. Embora em realidade
este seja um critério para pesquisas, sendo um dos motivos o seu maior domínio
sobre as variedades linguísticas, conseguindo flexibilizar seu uso de acordo
com a situação.
A
personagem Irene defende que os gramáticos atuais não refletem os fatores
históricos, sociais e culturais da língua, eliminando sua complexidade. Ela
ainda ressalta que o PP e o PNP nunca entrarão em consenso, e que sempre haverá
distância entre a tendência conservadora do PP e a inovadora do PNP.
Irene
também propõe que a escola seja um espaço onde se proporcione o máximo de
variedades linguísticas para que as pessoas tenham noção de que há um leque de
variedades. Não existe um PP e um PNP, mas uma língua única, com a norma-padrão
e todas suas variações, sendo que o processo de transformação da língua nunca
para, tanto no PP quanto no PNP.
Assim,
percebe-se que não há um falar “certo” ou “errado”, muito menos um português
“universal”, único, mas uma língua repleta de variações com explicação lógica e
científica. Variações que, inclusive, existem em diversas outras línguas, com
aspectos que são, em realidade, arcaísmos. E que a oralidade é muito rica, não
podendo ser banalizada em razão da língua escrita, pois o PNP não é inferior ao
PP, mas diferente, não podendo ser alvo de preconceito linguístico.